QUANDO SOU JOIO E QUANDO SOU TRIGO


Graças a Deus, por Ele ter me permitido mesmo tardiamente, conhecer o “porquê” do preconceito que tinha contra os que não professavam a minha fé. Preconceito este, que durante muito tempo em minha vida encharcou-me a alma com a lama e o ranço da intolerância. Agora, aos meus sessenta e dois anos de idade, fazendo um retrospecto, cheguei à conclusão de que o meu coração foi preparado e adubado desde a mais tenra infância com um único propósito: o de conceber só as sementes do trigo. No resguardado campo do minha plantação, eu só podia admitir o trigo. Quanto ao joio eu aprendera a enxergá-lo só nos outros, concepção essa reforçada diuturnamente através dos alertas de minha mãe, que em tom ríspido falava: “Olhe, meu filho! Você é um crente ouviu? Não se misture em hipótese alguma com esses moleques de rua”.


Foi por esse tempo de minha formação juvenil, que de forma inconsciente, foi semeada no campo fértil do meu coração, uma sementezinha de joio, que fazia me ver como uma pessoa privilegiada, de primeira classe. Aprendi por essa época, como olhar as pessoas de classe inferior (os incrédulos) de soslaio, como quem enxerga um animal irracional. Enfim, era considerado pela minha comunidade religiosa como o trigo da parábola. No entanto, era junto aos moleques de ruas (tidos como joio) que eu fazia às escondidas, mil estripulias. A meu ver, secretamente, eu podia fazer de tudo junto à molecada. Contanto que os meus pais de nada soubessem, em minha imaginação, estava seguro do meu lugar no panteão das moradas celestes. A semente do joio representada pelo egoísmo, pela prepotência, pela estupidez, e pela mentira já tinha germinado em minha mente de criança, sem que eu e meus pais tivéssemos consciência. A santidade que diz: “separados do mundo”, vendara os meus olhos para não enxergar o óbvio. Assim como o apóstolo Pedro queria que os gentios se comportassem como judeus, quando ele mesmo às escondidas se servia de práticas pagãs, assim eu também me comportava. Na rua era um diabinho, e em casa um santinho da mamãe e do papai.


Lembro-me bem que entre meus “amiguinhos incrédulos” havia um “moleque” desbocado e de compleição física avantajada que acusávamos sempre de ser o culpado, quando nossas ações más eram descobertas pelos adultos. Ele era o nosso “bode expiatório”. Tudo que saia errado, dizíamos: é culpa daquele ali. E mandávamos o mesmo desaparecer desabaladamente, para não ter que dar satisfações ─, numa reedição daquilo que faziam os filhos de Israel na época de Moisés, quando transferiam os seus pecados para um bode que depois era solto para desaparecer sozinho pelo deserto inóspito.


Imaginem o que seria de muita gente graúda que hoje vive tirando onda de santinho, se não fosse o tal “bode expiatório?”. Só que essa gente se ilude ao pensar que o nosso semelhante escolhido para “bode expiatório”, tem o poder de retirar o joio de seus fingidos corações, deixando o trigo intacto.


Distante mais de meio século dos tempos de minha meninice, por incrível que pareça, ainda vejo pais e mestres (que no dizer de Paulo já deveriam se alimentar de sólidos) cantando a mesma ladainha: “Nós somos trigos, os outros são o joio”. Esse pressuposto foi explorado brilhantemente por Sartre ao cunhar a célebre frase: “
O inferno são os outros”.


Eu perguntaria ao nobre leitor:


Por acaso, o nosso roçado de trigo cercado com muros aparentemente indevassáveis, são realmente só de trigo?


Deus parece estar dizendo: “Oh! Que triste engano homem! O trigo é muito parecido com o joio, e ao teu débil olhar, parecem ser a mesma coisa”.


Seríamos tão mais convincentes e sinceros se admitíssemos que em nossas atitudes e racionalizações, ora somos trigos, ora somos joios. Mas algum leitor poderá contra-argumentar:


─ Sendo assim, estou diante de uma contradição, pois a Bíblia revela que de uma mesma fonte não pode jorrar água doce e água amargosa.


Se em cada pessoa só existisse um tipo de fonte ─ o leitor estaria com a razão.


Só que essa assertiva não resiste a uma boa análise, pois na realidade existem duas fontes: uma é a fonte de vida e outra a de morte ─, cada uma com seu tipo de líquido.


A história registra que alguns antigos ao reconhecerem a dualidade existencial, simbolizada pelo joio(metáfora do mal) e pelo trigo (metáfora do bem), imaginavam que o ser humano fosse possuidor de duas almas: uma boa e outra má. Assim é que Xenofonte em sua obra: “A Vida de Ciro”, sobre certo nobre persa de nome Araspe, o qual teve conduta errônea para com Pantéia, uma bela escrava, assim declamou: “
Ó Ciro, estou convencido que tenho duas almas; quando a alma boa domina passo a praticar ações nobres e virtuosas; mas quando a alma má predomina sou constrangido a praticar o mal. Tudo quanto posso dizer quanto ao momento é que minha alma boa é encorajada pela tua presença, tendo assim obtido o domínio sobre minha alma má”.


Uma versão cristã análoga a de Xenofonte, foi a que Paulo proferiu diante dos Romanos (7; 21): “
Acho então esta lei em mim, que mesmo querendo eu fazer o bem, o mal está comigo”.


A respeito do “trigo” ─ como metáfora do bem, e do que é verdadeiro; e do “joio” ─ como metáfora do mal e do que é falso, podemos assegurar que: quanto mais profunda for a espiritualidade do crente, maior será a sua percepção para entender esse conflito humano que fez o apóstolo Paulo num momento de arrebatadora intuição, assim se definir: “
Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?”(Rom 7: 24).

ARTIGO EXTRAÍDO DO BLOG ENSAIOS & PROSAS

Um comentário:

  1. Paz do Senhor!

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    Deus abençoe!

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